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um conto africano: um dia na vida do griô

                                       
Griô e sua Kora
                                         


Ao amanhecer, desde os primeiros cantos dos galos, Aissata, mulher do griô Djèliba de Biramadougou, está trabalhando no centro do pátio. Ela acende o fogo sob a panela de água. Enche um balde com água morna e o coloca no espaço reservado para o banho. Seu marido se lava, veste-se e se dirige ao pátio do chefe da aldeia, o príncipe Mamoury Keita, que está a sua espera.
Assim que o griô encontra o príncipe, joga fora o bastão para limpar os dentes que estava utilizando desde que se levantou e o cumprimenta:
- Passou a noite em paz?
- De nenhum outro modo – responde o príncipe. – E o senhor?
- Graças ao Todo-Poderoso, só tivemos paz.
O griô e o príncipe caminham juntos em direção à mesquita. No trajeto , falam das desventuras que os uivos e as risadas das hienas durante a noite poderiam estar querendo anunciar.
- que Alá nos guarde da desgraça – diz o griô enquanto se dirigem à clareira da mesquita, para onde o muezim, depois do canto dos galos, chama os fiéis.
As pessoas mais importantes de Biramadougou já chegaram. Djèliba e o príncipe são os últimos. Colocam-se em fila e a oração então começa. Depois da oração, o griô acompanha o príncipe de volta até sua casa. Enquanto isso, Aissata acorda os filhos Seydou e Alassane. Após uma rápida higiene, compartilham o to da noite anterior, esquentado pela mãe. Os meninos se arrumam para ir à escola corânica, na casa do imã, cujo pátio fica três concessões mais a leste.
Até o raiar do sol, Djèliba, com o bastão para limpar os dentes na boca, folheia e lê o Alcorão antes de tomar o café da manhã com arroz cozido. Nesse dia, vai se realizar a cerimônia de sétimo dia de Famory Doumbia. O saudoso Famory Doumbia era uma figura notável da aldeia e o sepultamento ocorreu na semana anterior.
Os habitantes da aldeia se encontram no pátio da casa do falecido. Em primeiro lugar, os griôs. Seus trajes são os melhores. Quando o príncipe Mamouri Keita chega, Djèliba está entre os demais, em pé, com um largo bubu suntuoso e imponente.
- Keita! Keita! Keita Pai! Keita Mãe! Verdadeiro descendente de Sundjata, o unificador, o homem-bufalo. Tu, cuja mãe nunca carregou um fardo na cabeça. Oh, eu te saúdo, desejo-te uma manhã feliz... assim grita Djèliba apontando o príncipe e, com outras formas lisonjeiras, continua cantando seus louvores até ele tomar seu lugar. Uma vez instalado, o príncipe tira do bolso um macinho de notas e o entrega ao griô. É hora de apresentar o nobre Kourouma.
- Kourouma! Pai Kourouma! Mãe Sanogo! Descendente de Facoly, o lendário general de Sundjata, o homem-pantera. Como ele, o senhor tem a rapidez, a agilidade e a beleza da pantera. Uma saudação e um voto de boa manhã... assim declama Djèliba. O griô deixa Kourouma ir para seu lugar e recita frases lisongeiras sobre as qualidades dele e de seus ancestrais. Kourouma também entrega algum dinheiro ao griô. À medida que os nobres chegam, Djèliba e os outros griôs os louvam e os acompanham, e eles, de forma visível, levam a mão ao bolso para pagá-los.
Logo a cerimônia começa. Com talento, Djèliba comenta os testemunhos detalhados sobre a vida do morto:
- Famory era um mestre caçador. Agora que já não é deste mundo, leões, panteras e hienas vão se sentir seguros e chegarão perto de nossas casas. No final, a família paga os griôs e oferece a eles e a alguns convidados uma refeição.
São quase duas horas, horário da segunda oração. Cabe ao griô chamar os fiéis. Todos os presentes se enfileiram e se curvam no gesto da oração. E Djèliba já está atrasado para o próximo compromisso.
Ainda neste dia, ele precisa oferecer a noz-de-cola à família Coulibaly como sinal do pedido de casamento feito pela família Sanogo. O dote proposto foi considerado ridículo pelos Coulibaly.
- Três bois por uma moça com tantas qualidades? Não basta!
O griô usa a diplomacia e precisa ser hábil para chegar a um acordo de quatro bois.
Neste dia, Djèliba também tem de reconciliar as famílias Dagnogo e Kamara, que brigaram por causa da cerca de uma horta. Os envolvidos estão reunidos na mesquita. As negociações duram até o cair da noite, a hora da quinta oração. Nenhum resultado!
As discussões serão retomada no dia seguinte. Antes de voltar pra casa, Djèliba percorre as ruas da aldeia para anunciar o concerto da noite.
Em casa, é hora do jantar. Ao redor da cabeça cheia de foutou estão os filhos Seydou e Alassane, que passaram o dia com o marabuto para aprender a ler o Alcorão. Primos e sobrinhos se juntam a ele, formando um grupo de cerca de dez pessoas.
A refeição é consumida com pressa, pois é preciso preparar-se para o concerto: os habitantes da aldeia estão à espera em volta de uma enorme fogueira na casa de Mamouri Keita.
A pequena família de Djèliba se reúne. As duas crianças tocam os tam-tans e ele dedilha a kora para acompanhar Aissata. Sua voz de soprano é única e as pessoas vêm de longe para ouvi-la.
Djèliba narra a história de Sundjata:
- Nasceu paralitico. Quando os mandingas foram convocados, ele se arrastava pelo chão. Mas decidiu enfrentar o problema. Tentou levantar-se usando três barras de ferro, que não agüentaram. Partiu as três. Quando chegou à quarta, conseguiu ficar em pé... assim começa a história de Sundjata.

"Extraído de Homens da África, de Ahmadou Kourouma."

Comentários

  1. A Menina eu te amoooooo!!!! estava louco atrás deste texto... e ontem leno o texto no livro... me pus a imaginar numa parceria contigo...
    E aí vou procurar pelo texto e onde ele está, senão no terreiro de griots

    Asè

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